Renan de Araujo Rodrigues[2]
A estruturação e o funcionamento do atual sistema educacional
brasileiro é devedor das circunstâncias sócio-políticas que definiram a vida do
país ao longo da sua formação histórica, em especial, aquelas resultantes das
modificações institucionais trazidas pelo regime republicano. Assim, pode-se
considerar como uma característica da educação escolar brasileira contemporânea
a sua vinculação direta aos ideais trazidos pela república, uma determinada
valorização da educação na formação de uma nação moderna pela atividade
educacional de seus cidadãos. Nesse sentido, a educação brasileira segue deste
então uma orientação de conformidade com uma ideologia que se faz plena na
concepção de um determinado tipo de condição social, a dos homens e mulheres
modernos, livres e independentes para agir no mundo urbano e industrial. Buscaremos,
a partir desta definição da educação brasileira pela sua vinculação com uma
condição sócio-histórica determinada, trazer algumas reflexões a respeito do
papel da educação profissionalizante no conjunto dos debates que configuraram o
atual sistema educacional brasileiro; utilizaremos para tanto matérias
publicadas recentemente e que tem por tema a vinculação da educação com o mundo
do trabalho.
De acordo com
Libânia N. Xavier (XAVIER, 2003) a formação do sistema educacional brasileiro
contemporâneo está inserida num contexto que apresenta uma configuração
repartida entre duas esferas de influência, com projetos educacionais
distintos: uma educação privada e outra pública; o sistema oriundo desta
disputa é definido pela autora como uma instituição constantemente oscilante,
ora para um, ora para o outro lado, dependendo da correlação de forças na disputa
pelos rumos sócio-políticos do país, tornando-se “crucial
para se entender a relação entre educação, Estado e sociedade no Brasil
republicano” (XAVIER, 2003, p.239) Estes grupos antagônicos podem ser
definidos, grosso modo, pelas “[o]ligarquias agrárias, os interesses universais
da Igreja católica e os anseios dos nacionalistas conservadores” (XAVIER, 2003,
p.239), representando o projeto de educação privada, em oposição a um grupo de
intelectuais e da classe média que buscavam afirmar “os ideais republicanos,
federalistas e
democráticos”, defendendo
a organização de um sistema
nacional de ensino, unificado, porém, pautado na descentralização
administrativa. Isso porque, ao mesmo tempo em que confiavam na ação agregadora
de um Estado que deveria definir-se como encarnação do interesse público, eles
não deixavam de considerar as possibilidades criadoras resultantes da
articulação entre a escola e as realidades locais e regionais. (XAVIER, 2003,
p.239)
Para este último grupo a educação
era um dever primordial do Estado, devendo este subtraí-la das mãos da família
e da Igreja para então torná-la uma “função social e pública” (XAVIER,
2003, p.239) Com efeito, esta disputa ideológica entre o público e o privado
lança sobre os debates a respeito da educação as características que retira do
contexto histórico marcado pela modernização das instituições, a expansão
industrial e a vida urbana, evidenciando, então a centralização do tema da formação
técnica e do trabalho. Esta passa a acompanhar a reivindicação por uma educação
pública e laica, identificada mais com a atuação profissional e política dos
cidadãos. Com a necessidade de se definir uma legislação educacional em âmbito nacional,
e estando “[n]o centro da disputa [...] a organização do ensino secundário e
profissional”, o ideal publicista dos pioneiros de uma educação renovada
propunha
a escola comum, nos moldes da escola
“compreensiva” americana, defendida por Anísio Teixeira. Esse modelo de escola
pautava-se na integração entre o interesse cultural e o interesse prático,
constituindo, na visão de seus defensores, em uma escola adequada à sociedade
democrática e às características próprias do estilo de vida urbano e industrial.
Nesse modelo, a descentralização administrativa e a autonomia financeira e
técnico-pedagógica eram elementos essenciais. (XAVIER, 2003, p.242)
A atribuição e a localização do ensino técnico e
profissional no interior do sistema educacional brasileiro passou a constituir
desde os anos 1930, mas, sobretudo nos anos 1960 e 1970, uma demanda popular
pela extensão da educação em moldes mais adaptados à realidade social dos
brasileiros, evidenciando, assim, a oscilação fundamental de que nos informa
Libânia Xavier, entre dois projetos educacionais distintos: “a polêmica girava
em torno do caráter que se queria dar ao ensino de nível médio: se democrático
ou elitista, se aberto ao público sem restrições ou se restrito a um grupo privilegiado” (XAVIER, 2003, p.243) O
privilégio em questão é fruto da própria formação da sociedade brasileira,
extremamente desigual no que se refere à divisão social do trabalho, onde se
produziu em todas as suas fases históricas um fosso existente entre uma elite
intelectual e uma massa de trabalhadores braçais, escravos e livres,
desassistidos por qualquer política igualitária e inclusiva. Esta estrutura
sócio-econômica gerou, em consequência, um sistema escolar dicotomizado por uma
formação para o trabalho e outra para a propedêutica, a filosofia e as humanidades,
sendo a primeira reservada aos filhos da classe trabalhadora, e a última, às
elites dirigentes e a burocracia estatal, etc. (AZEVEDO, 2011) Esta
característica dicotômica da sociedade será responsável pela definição mais
básica das orientações que irão conduzir as políticas públicas no setor da
educação brasileira, ou, antes, será o ponto determinante a partir do qual a
oscilação referida terá de lidar constantemente para poder definir o princípio
e o objetivo da própria educação no Brasil contemporâneo. Na atualidade isto
reverbera na sociedade mais ampla e na opinião pública no que diz respeito às
expectativas dos alunos frente à oferta de cursos e de programas educacionais
planejados pelo Estado. Conduzida por uma perspectiva econômica voltada para o
mercado de trabalho a educação parece viver na atualidade uma tendência de
desvalorização do modelo humanista, concentrando seu foco na formação
profissional; é o que nos mostra a matéria Graças à
classe C, cresce no Brasil procura pela educação profissional publicada no jornal O Globo de 12 de fevereiro de
2012. Informa que de 2002 à 2010 houve um crescimento na procura dos cursos
profissionalizantes, tendo sido atingido um pico entre 2004 e 2007. De acordo
com o autor a educação profissional embora em crescimento encontra grande
resistência entre o alunado do país, causada pelo que identifica como uma
desinformação à respeito dos benefícios proporcionados pelos cursos profissionalizantes,
que no geral qualificam o formando para uma posição profissional mais bem
remunerada. A propósito, o tema da reportagem se concentra exatamente no fator
econômico como estímulo à uma mudança no perfil educacional brasileiro, onde
aparece como determinante a possibilidade de uma efetiva mobilidade social concentrada
na produção e no consumo, ou seja, no mercado.
A educação atrelada à uma lógica do mercado, na
forma da preparação para o mercado do trabalho e a profissionalização,
constitui, como vimos, um dos elementos constituintes da oscilação histórica
entre o modelo público e privado nas instituições brasileiras. O papel do
sistema educacional brasileiro como um todo reflete este equilíbrio,
principalmente na definição que se busca de uma educação básica, obrigatória e
comum e que possa justificar o valor republicano da coisa pública. Em face
desta disputa qual o papel da escola pública, e, sobretudo, do ensino médio? É
o que põem em questão os autores da reportagem CNE e o pesadelo do ensino
médio publicada no jornal O Estado de São Paulo no dia 8 de fevereiro de
2012. Com uma crítica direta à centralização das políticas públicas referentes
à educação nacional pelo Conselho Nacional de Educação (CNE), os autores
identificam uma característica elitista e fora da realidade atual do povo
brasileiro, não apenas no âmbito nacional, mas também em escala global, fator
contribuinte para a perda de posição do Brasil no ranking dos países desenvolvidos,
cuja postura em relação à formação dos estudantes é orientada por um dinamismo
mais condizente ao cenário da economia mundial. O currículo mínimo, que chamam
de “Educação Geral”, é atacado como um empecilho para uma formação mais
objetiva e interessante para os alunos, obrigados a suportar uma carga horária
imensa e extenuante, que além de impedir a especialização é também ineficaz na
preparação para as universidades, já que “[u]ma fração ínfima dos egressos de
escola pública prossegue para o ensino superior”. As críticas dirigidas aos
pareceres do CNE demonstram um tom de franco escárnio ao que consideram como um
discurso filosofante, vazio e elitista:
O estilo gongórico da resolução do CNE dificulta
sua compreensão. Por exemplo: "O projeto político-pedagógico na sua
concepção e implementação deve considerar os estudantes e professores como
sujeitos históricos e de direitos, participantes ativos e protagonistas na sua
diversidade e singularidade". Já que alguma força profunda empurra para
esse linguajar, por que não publicar, simultaneamente, uma versão inteligível
para o comum dos mortais? E tome legislação: são quatro áreas de conhecimento e
nove matérias obrigatórias - apelidadas de
"componentes curriculares com especificidades e saberes próprios
construídos e sistematizados" -, que são subdivididas, sempre na forma da
lei, em 12 disciplinas. Não admira que os alunos abandonem os cursos. Como
dizia Anísio Teixeira na década de 50, tudo legal, e tudo muito ruim! Mas o
pior está por vir. A resolução não define o que seja "educação
geral", mas no inciso V do artigo 14 afirma que "atendida a formação
geral, incluindo a preparação básica para o trabalho, o Ensino Médio pode
preparar para o exercício de profissões técnicas". Instrutivo notar que a
profissionalização é vista como um "pode", e não como um caminho
natural que alhures é seguido pela maioria. (OLIVEIRA,
J. B. A.; SCHWARTZMAN, Simon; CASTRO, C. M., 2012)
No entanto, não deixa de transparecer, no calor dos
apontamentos e reprimendas, uma perspectiva ingênua, de quem parece ter uma
resposta simples e direta à uma questão estrutural. Os autores parecem não ter
uma posição crítica aos valores tornados absolutos em suas considerações, como
por exemplo um desenvolvimentismo pautado numa corrida internacional tornada
“natural”. A referência à Anísio Teixeira é interessante pois ela serve para
por em questão exatamente a relação trazida pelo grupo do qual era parte entre
uma formação para o trabalho, de cunho realista, em conjunto com uma formação
cidadã, e mesmo nacionalista, ou seja, uma formação onde o aspecto político e o
econômico se entrelacem num todo definido pela própria condição histórica da
modernidade industrial, sem perder um caráter unificado. A medida deste
entrelaçamento pode ser redefinido como a própria tendência oscilatória da
educação brasileira a partir do período republicano, o que significa por em causa
uma resolução naturalizada pelas trocas econômicas, pelos indicadores dos
padrões internacionais de produção e consumo como quer o tom das críticas
citadas na reportagem. Tornando o aspecto da unificação a partir do CNE como
algo meramente ultrapassado os autores incorrem no risco de negligenciar um
problema estrutural, apagando o efeito das desigualdades com soluções
econômicas, o que na verdade depende de uma atividade política que a acompanhe,
a começar pela própria definição do trabalho e dos meios de produção no seio da
sociedade. O fim da matéria é bem claro quanto a este problema, na sua dimensão
ideológica:
Na prática, os alunos dos cursos técnicos têm uma
carga de estudos mais pesada do que os que fazem o acadêmico puro. Difícil
imaginar maior desincentivo para a formação profissional. Nos países mais
bem-sucedidos em educação os cursos técnicos têm carga horária igual ou menor
que o acadêmico. Para valorizar o lado profissionalizante, o texto diz que o
"trabalho é conceituado na sua perspectiva ontológica de transformação da
natureza, como realização inerente ao ser humano e como mediação do processo de
produção da sua existência". Deu para entender? Traduzindo do javanês, é
preciso aumentar a "educação geral". O novo ministro da Educação
encontra-se diante de uma oportunidade ímpar. Ou seja, alinhar o ensino médio à
realidade de seus alunos, de sua economia e à luz da experiência de quem fez
melhor do que nós. (OLIVEIRA, J. B. A.; SCHWARTZMAN, Simon; CASTRO, C.
M., 2012)
A reflexão que pretendemos trazer
aqui define-se assim: qual o papel da educação numa sociedade moderna e
industrial, em especial, colocando-se a necessidade de se fortalecer as
instituições políticas nela contidas em consonância com o progresso material
dos seus cidadãos? A resposta provisória que encontramos para esta questão
localiza-se na aceitação do diagnóstico feito por Libânia Xavier a respeito da
oscilação entre o público e o privado, com a perspectiva crítica de que esta
tendência não se resolve de forma natural e unidirecionada pelo mercado de
trabalho e pela economia em geral, mas que depende de um fator político
inerente, problema levantado pelos pioneiros da educação a partir dos anos
1930. Isto coloca em debate uma positivação irrestrita de uma educação para o
trabalho, sem que se perceba a sua necessidade, histórica, de educar para as
instituições, e logo para um ideal democrático de equalização das condições
sociais. Refletindo este ideal republicano a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (Lei 9.394 de 20 de dezembro de 1996) traz em seu título II:
Dos Princípios e Fins da Educação Nacional
Art. 2o A educação, dever da família e do Estado,
inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem
por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o
exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.
Assim, compreendida como fruto de uma disputa
política histórica a LDB reflete o estado de ambiguidade e oscilação sobre o
qual viemos refletindo ao longo deste trabalho. Para reforçar o argumento que
viemos adotando, o qual busca tornar clara a natureza política do debate sobre
a educação, negando, portanto, uma certa “naturalização” e direcionamento dos
caminhos levados pela economia, gostaríamos de citar mais duas reportagens que
demonstram uma maior complexificação das dinâmicas sociais no Brasil a partir
da sua vida educacional. A primeira delas mostra uma tendência similar ao que
vimos para o ensino médio no que toca à valorização da formação para o mercado
de trabalho, com a diferença de aqui tratar-se do ensino superior. Com o título
Em uma década, cursos tecnológicos receberam 547% mais alunos em SP a
matéria publicada no dia 21 de fevereiro de 2012 pelo jornal O Estado de São
Paulo vem informar que as graduações tradicionais caíram em 20% nas procuras
dos recém-saídos do ensino médio, perdendo espaço para as graduações
tecnológicas, de duração mais rápida e conteúdo mais direcionado e menos geral.
Em contraponto a este panorama foi publicado pelo Terra Educação do dia 30 de
junho de 2012 a matéria Filosofia do Direito passa a ser cobrada no exame da
OAB em 2013, onde é informado uma modificação no processo seletivo para o
exame da Ordem dos Advogados do Brasil, passando-se então a serem cobrados os
conteúdos de filosofia e de sociologia do direito. A medida destina-se a
avaliar a capacidade de interpretação autônoma e não automática (meramente
técnica) das normas (hermenêutica jurídica) e a posse de uma conduta ética por
parte dos novos advogados.
Finalmente,
recordamos, então, para recolocar o problema, que a carreira da magistratura,
sendo uma das mais tradicionais e elitistas (e bem pagas) do país faz uso de
recursos de formação que situam-se praticamente em direções opostas às que
conduzem a “maioria”, reproduzindo em consequência a posse de um conhecimento
humanístico moral, que aliás, define-se como trabalho intelectual; trabalho
este que serviu para formar todo o quadro das elites e dos privilégios na
história brasileira. A questão coloca-se então: que tipo de educação para que
tipo de trabalho?
Refêrencia bibliográfica
AZEVEDO, Janete M. L. O Estado, a política
educacional e a regulação do setor educação no Brasil: uma abordagem histórica in
FERREIRA, Naura S. C.; AGUIAR, Márcia Ângela da S. Gestão da educação:
impasses, perspectivas e compromissos. São Paulo: Cortez, 2011.
FILOSOFIA do Direito passa a ser cobrada no exame
da OAB em 2013. Terra Educação, 30/05/2012, São Paulo.
LDBEN, Lei no 9.394, de 20 de dezembro de
1996.
MANDELLI, Mariana. Em uma
década, cursos tecnológicos receberam 547% mais alunos em SP. O Estado de São Paulo, 21/02/2012, São Paulo.
OLIVEIRA,
J. B. A.; SCHWARTZMAN, Simon; CASTRO, C. M. CNE e o pesadelo do ensino médio. O
Estado de São Paulo, 08/02/2012, São Paulo.
SOUZA,
André de. Graças à classe C, cresce no Brasil procura pela educação profissional.
O Globo, 08/02/2012, Rio de Janeiro.
XAVIER, Libânia N. Oscilações do público e do privado
na história da educação brasileira. Revista Brasileira de História da Educação,
n° 5 jan./jun. 2003